sexta-feira, 4 de setembro de 2009



O Banquete de Felipe Cordeiro: Brasilidade na medida certa
Camila Barbalho


Felipe Cordeiro faz parte de uma nova e competente safra de compositores paraenses. Inserido e confortável no cenário da música popular, Felipe traz no seu primeiro CD, “Banquete”, uma mistura agradável a quem contempla a obra. A começar pelo projeto gráfico: a capa do CD e as imagens no encarte remetem ao conceito de banquete dionisíaco, com cálices de vinho e corpos seminus. Na imagem impressa no próprio CD, porém, a referência muda – o Banquete agora é o livro de Platão.
No disco, o compositor traz quatorze canções bastante diferentes entre si. De tudo tem um pouco: samba, blues, bolero, melancolia e inquietação, levadas suingadinhas e trompetes chorosos... Seja pela variedade de timbres (Felipe chamou doze intérpretes para dividir as faixas, já que o mesmo não canta) ou pela de estilos, “Banquete” consegue a raridade de ser diverso sem ser disperso. Todas as músicas possuem a identidade de Cordeiro impressa nas letras e nos arranjos – que ora parecem pertencer a esse cenário de cancioneiro popular, ora surpreendem com leituras modernas e complexas, como as faixas “Banquete” e “Tambor Moderno”, ambas interpretadas por Karina Ninni. Pode-se dizer que não há uma música que se deva pular ao ouvir “Banquete”, que soa muito melhor quando contemplado por inteiro.
Felipe nos fala por meio de vários personagens. Na valsinha “Desfigurado”, ponto alto do disco e interpretada por Arthur Nogueira, o compositor faz um passeio urbano, solitário e melancólico, de alguém que tenta se situar e desconstruir sua realidade na poesia: “eis que decido num espanto dar a meia volta/ riscar a avenida, traçar a medida do canto, do fausto/ cravar no asfalto a revolta, a guerrilha/ e ao chegar em casa vou produzir versos em largas escalas/ romper com as escolas/ viver nas imagens já desfiguradas da minha figura”. Parece ter saído de algum grande musical, o que é reforçado pelo tema instrumental ao fim da canção (composto pelo seu pai, Manoel Cordeiro, músico das antigas que fez parte do Warilou, a célebre banda de lambada).
Em “Obscena”, Andréia Pinheiro interpreta uma atriz que, ao encenar uma prostituta, não conseguiu se desvencilhar do personagem. O arranjo é inquieto; e a melodia, dolorosa – acompanhada de fraseados de trompete tão pungentes quanto. “Na Paisagem” é uma faixa bem radiofônica, com linhas de baixo e bateria quebradas que lembram um pouco a sonoridade de Djavan, o que é fortalecido pela interpretação limpa e leve de Olivar Barreto. A letra é bonitinha e passa uma idéia positiva de não se prender às coisas trágicas: “sem trégua, a vida segue e vai/ sem mágoa, a vida quer viver”. “Sem Porquê” é uma marchinha saudosista e romântica interpretada por Lívia Rodrigues, que aconselha: “deixa o coração corar no turbilhão/ deixa amar no chão e no mar”.
O compositor, que já trabalhou com trilha sonora para peças de teatro, acerta a mão em mais uma característica: suas músicas são bastante imagéticas. Cheias de jogos de palavras – como na faixa “Um!”, cuja autoria ele divide com Marcelo Sirotheau e Joãozinho Gomes: “Estou comum em Estocolmo, como você em Istambul/ Eu estou bambo a desejar teu corpo nu/ Rimbaud, não Rambo” – e referências literárias (como uma citação de Nietzsche na faixa “Relicário”), quem ouve o “Banquete” se sente transportado para dentro de seu próprio cenário, cheio de cores, que levanta a bandeira da brasilidade sem cair no óbvio ou no piegas. Com esse primeiro trabalho, Felipe Cordeiro confirma o que diz o refrão da faixa-título do CD: ele tem o jeito de dar o tom.

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Por que não sou chato?
Impressões do festival RBA de música popular paraense


Primeiro fiquei me perguntando o que seria um festival de música popular paraense? Já que música popular paraense pode ser admitida em duas acepções, a saber: uma no sentido de que existe um estilo chamado música popular paraense ou mpp (alguns usam essa sigla) e outra de que existe uma música popular no Pará, isto é, uma música não-erudita e, portanto de caráter popular. Só que nesta segunda acepção mora uma confusão conceitual universal, é que às vezes o não-erudito se relaciona por oposição ao que é popular e em outras, não-erudito é um dos lados da dicotomia, mas desta vez em relação ao massificado. Isso quer dizer que muitas vezes as pessoas não entendem popular como sendo sinônimo de massificado. Portanto, segundo esta visão, cultura popular é uma coisa e cultura de massas é outra. Em geral essa visão da cultura tende a ser negativa em relação à cultura de massas, aliando esta a um comportamento de consumismo excessivo e medíocre, conseqüência da desvalorização que o liberalismo econômico envenena no sistema capitalista, desvalorizando, portanto, a obra de arte séria, a obra de arte que não é a de puro entretenimento.
A alemã Hannah Arendt pensava assim. Eu sempre a achei ingênua, uma idealista boba e meia boca. Já o americano Andy Warhol, mesmo que sua porralouquice infantil fosse capaz de diminuir seu valor artístico perante a opinião pública intelectual, pensava de maneira bem interessante esta questão, e hoje, o tempo mostra que ele estava certo e foi realmente um homem genial nas suas premissas. Ora, convenhamos, um cara que é capaz de criar mitos no mundo moderno e de dizer que o mito moderno é algo vazio, é genial (embora todo mundo saiba disso, sem saber contar). Marilyn Monroe era linda e tinha qualidades artísticas (pelo menos fotográficas e de carisma), mas, sobretudo, era absolutamente vazia, assim como toda “celebridade” de um modo geral. Não esquecemos que há muitos intelectuais igualmente vazios.
As referências críticas de Hannah contra a indústria cultural são frágeis. Bastar ver que o critério de durabilidade de uma obra de arte é vacilante quando o assunto é teatro, a arte que não fica. Mesmo em música eu poderia pensar em contradições. Contradição é um perigo para os idealistas. A não ser contradições lógicas.
De fato o que me instigava no começo do festival era em qual das duas acepções seria tomada a idéia de música popular paraense. Sei que ninguém do grupo RBA fez tal reflexão sobre o assunto, será que saberiam fazer? Os compositores em geral eu sei que não sabem. Mas sempre que vem um festival, vem junto também mais ou menos consciente, uma proposta de festival, isto é, um pensamento sobre o que é um festival e que papel ele deverá cumprir. Esse festival se propôs formalmente a abarcar a diversidade da música popular paraense. Na minha cabeça, continuava a ambigüidade, já que não era esclarecido o questionamento que fiz anteriormente, isto é, o que é música popular paraense?
Já vi o Paulo André Barata, falando sobre o assunto, certa vez, numa entrevista no Sem Censura Pará, disse ele que não concordava com a expressão música popular paraense, só concebia a idéia de música popular brasileira, pois não existiria uma música popular mineira, uma música popular carioca, uma música popular alagoana, uma música popular capixaba. Acho engraçado, no entanto, a relação de identidade que existe em algumas concepções da questão (não é bem o caso do Paulo André), entre música popular brasileira e música popular carioca, para muitos, música popular brasileira pode se resumir, em essência, à música popular carioca. O samba expressa a alma do brasileiro (o carioca acredita em alma). Assim nem a milonga sulista, nem o marabaixo amapaense fazem parte de fato da tradição da música popular brasileira. Eis uma curiosidade sintomática da nossa louvação dogmática aos malandros cariocas, que com seu jeito de SER “contagiam” e “convencem” muitos brasileiros.
Está certo que a Globo ajuda. Está certo que o fato de o Rio ter sido capital do Brasil ajuda. Por que será que entre tantos ritmos ricos que vieram das diversas regiões da áfrica durante a colonização e o período escravista (o negro por baixo), logo o samba se tornou a “tradução da alma brasileira”? Salvador foi a primeira capital, o Rio a segunda, o samba (segundo diz o mito) chegou ao Rio vindo da Bahia através das tias Ciatas, será isso mesmo? Os cariocas aplicam muito! Assim como os paraenses (sobretudo do interior), é preciso ficar com um pé atrás. Muita coisa ajuda o carioca. Eu tenho medo dos cariocas. Mas medo no sentido metafórico. Paraenses são cariocas. Pernambucanos (apesar de estarem no litoral do território brasileiro) são paulistas. Não sou de nenhum lugar. Nenhuma pátria me pariu. Eu não to nem aí. Eu não to nem aqui. Desculpa Arnaldo, durma em paz novamente! Voltando...
É mentira minha (paraense mente), sou paraense sim. Pelo menos sou mais paraense do que carioca. Mas o que é SER paraense? Não sei, mas sou. Na modernidade acostumou-se a pensar a idéia de identidade - seja de um povo, seja de um indivíduo isolado - como sendo “mutante”, sendo “líquida”. Houve uma quebra de paradigma. O homem moderno não é “um”. Fernando Pessoa foi o primeiro caso radical em nossos tempos, embora Nietzsche já tivesse deixado o caminho aberto, desse homem que É tantos. Na verdade, Pessoa e o homem contemporâneo em geral vai até mais fundo, e, se pergunta: “sou alguém quando sinto SER?” Sabemos o que sentimos?
O homem moderno coloca em novos termos o velho questionamento grego da existência sobre o SER. Platão, Descartes, Shakespeare e Fernando Pessoa foram grandes porque não só não fugiram dessa questão como deram respostas geniais sobre a questão do SER.
Ora, perguntar sobre o que é música popular paraense, o que é diversidade na música popular paraense, o que é música popular paraense hoje são os únicos questionamentos sérios possíveis para um compositor, um músico ou um comentador de música no/do Pará que quer ser levado a sério quando fala desse assunto.
Esse festival ousou colocar (de maneira inconsciente certamente) essas questões e para mim, justamente por isso, foi o festival mais interessante que já participei. Coisa que falta no paraense e no carioca é ousadia. Ô povinho pateta! Ô malandragem mané! Já foi pior, houve um tempo (e ele ainda está por aí – cada SER ESTÁ) que a canção de um festival tinha que ter uma “cara”, isso porque música não é necessariamente canção (o meu conceito grosso modo de canção: música e “letra” articuladas num jogo poético e musical) e os festivais eram e ainda são em geral os “festivais da canção”.
Esse festival não estava interessado em levantar a bola das canções (embora a grande vencedora tenha sido uma canção clássica, aliás, bela canção clássica), por isso um grande número de músicas dançantes e outras em que grooves cíclicos acompanhavam letras bem prosaicas (de inspiração pobre). Eu digo que a prosa é superior à poesia, na verdade penso assim, porque sei que só existe uma coisa: idéia expressa em palavras. Um texto onde haja excesso de poesia acostuma os sentidos a uma doçura imprestável e a um cansaço das sensações (as canções tradicionais, quando mal feitas vão por esse caminho, isso do ponto de visto da “letra”).
Igualmente um excesso de prosa em função de uma desvalorização da “poesia”, ou melhor, da função poética cai numa falta de criatividade e talento para o simbólico, isto é, para criar realidades ou simplesmente, para criar. Por isso os grandes poetas são os que equalizam a relação entre prosaico e função poética. Com efeito, sabemos que num poema não existe só poesia, mas unicamente sua diferença em relação a textos não poéticos é o fato de que nele a função poética é a principal, nunca a única função. Por isso Fernando Pessoa, Shakespeare, Vinícius de Morais, Walt Whitman, Aldir Blanc, Caetano Veloso, Ruy Barata são grandes poetas.
Exatamente por isso um Paulo César Pinheiro, por exemplo, pelo excesso de prosa em relação à falta de sensibilidade para a criação de realidades, talvez uma deficiência na função imaginativa, é um poeta menor (se formos tratar compositores como poetas). Assim diria um Mário Faustino, eu diria a mesma coisa de outro jeito...Às vezes é preciso filosofar com um martelo, todos querem isso mas poucos sabem usar o martelo. Não filosofo com martelo, até tenho talento, eu seria infeliz.
O verso poético só se difere da prosa em relação ao ritmo. Ritmo se relaciona com a variação de silencio e emissão do som. O silêncio é a falta de som, portanto é pausa. Pausa é algo que existe assim como o não-ser. A pausa dura mais ou dura menos, só isso. A pausa na prosa se dá na Pontuação. No verso a pausa se dá na “mudança de linha” para acentuar a emoção, isso porque o verso é a linguagem do sentimento cantado enquanto a prosa é a linguagem falada escrita.
Um grande intérprete de música popular pra poder sê-lo deve “acreditar” na letra, além de acreditar na melodia. Porque a letra de uma música traduz uma idéia. Se for uma música sem letra, só melodia, não tem idéia, só sentimento (no máximo), já que sentimento é a lembrança de uma sensação. O correto para um intérprete de música instrumental é entregar o seu material vocal a uma sensação, entrega-lo a um sentimento é não saber o que está dizendo, já que não tem nada a se dizer. Aqui cabe ressaltar uma especificidade existente na música popular, existem de maneira bem definida dois tipos de cantores: os que são instrumentistas vocais e os que são intérpretes. O primeiro usa seu aparelho vocal de modo estritamente musical. O segundo alia elementos do teatro, do sentimento (que é um fingimento) ou até mesmo, em alguns casos da performance oriunda, sobretudo da cultura pop. Os jurados de um festival, sempre privilegiam um dos tipos, ora um, ora outro. Os músicos preferem o primeiro, mas há aqueles que valorizam mais ou menos o segundo. O público médio prefere radicalmente o segundo, quase sempre pela falta de sensibilidade musical.
O festival me surpreendeu. Fez escolhas não óbvias. Foi sério e generoso com todos. Eu pensava que podia ganhar algo e ganhei o segundo lugar. Fiquei muito feliz. Em primeiro lugar a música linda, bem tocada e bem cantada, pela grande Andréa Pinheiro, de autoria de Jacinto Kahwage. Uma música de inspiração jazzista que não tinha nada a ver com uma idéia tradicional de música popular paraense. Nesse ponto minha música também se assemelha a do Jacinto, mesmo que fale em “Remo e Tuna” sua sonoridade em nada lembra a timbragem étnica amazônica, minha música é americana, assim como a do Jacinto. O terceiro lugar ficou com Tinhosa de Carla Cabral e Camila Alves, defendida pela Juliana Sinimbú, um xote gracioso. Olha presença do nordeste na música paraense!
Melhor intérprete ficou com Aíla Magalhães, é o segundo festival que participa e o segundo que ganha o prêmio, ela tem “algo”. Eu sei o que é, mas sou vou falar a metade, ela acreditou na letra da minha música mais do que qualquer outra intérprete. A letra ajuda o intérprete, é como no teatro, o ator só nos emociona quando ele acredita plenamente no que diz. Ela foi fundo na letra de À Sua Maneira. Ou será que comprou o Júri? Sempre escuto algo assim por aí. Da próxima vez vou pedir pra ela não comprar ninguém e me dar um pouco desse dinheiro.
Embora eu não dê minha opinião de graça, isto é, só dou quando me perguntam, eu desde o começo do festival queria colocar minhas impressões em palavras, porque no festival muitas coisas aparecem, há muitos testes. O principal deles é o teste da vaidade. Acho muito chato as pessoas saírem me dando suas opiniões sobre o festival (ou qualquer coisa e isso é um lado meu chato) sem eu perguntar, no fundo, eu discrimino logo, mesmo que sejam opiniões favoráveis (Não há indiscrição maior do que um elogio). Porque fica parecendo que está subentendido que a opinião daquela pessoa é importante para a outra. É como um time de futebol que marca um jogo com o outro sem comunicar previamente. E geralmente esse time ainda pensa em entrar em campo de salto alto. Mulher não sabe jogar bola, por isso todo time que entra de salto alto perde. Assim como em política, todo forte adversário, que deixa transparecer favoritismo perde (quase sempre). Por isso não sou chato, porque entro em campo pra jogar bola e falar só o necessário na hora certa (a hora do jogo), às vezes ganho, às vezes perco, é normal...por isso não sou chato, porque não tenho afetações nos comentários que faço, nem sobre futebol, nem sobre política e nem sobre música...por isso não sou chato, porque pra mim música é música e futebol é futebol...festival de música popular não é bingo!

quinta-feira, 2 de julho de 2009

'aquele' violão...


Rápido pensamento sobre o violão de Manoel Cordeiro
Jazz – Universalismo – Estado de Espírito – Negro Cosmopolita


Como pode um músico brasileiro ser absolutamente devoto do violão de Baden Powell e negar radicalmente a bossa-nova? Como pode ele ter um sotaque que deve a Gilberto Gil sem se interessar genuinamente pelo rock’n’roll e pela linguagem jazzista? Nesse caso pode. Essa negação não é só do sujeito (Manoel Cordeiro), mas antes é do ‘violão’ de Manoel Cordeiro, esta gera aquela e não o contrário, como se poderia supor.
Baden nos mostrou um violão ao mesmo tempo pós-bossa nova e pré-bossa-nova, isso na medida em que tornou mais simples (e, obviamente, não mais ‘simplória’) os caminhos harmônicos, explorando uma atmosfera minimalista onda as zonas cíclicas, densas e sombrias, nos revelavam um estado de espírito melancólico e bravio, como um negro sobrevivente dos navios negreiros. Mas por outro lado nos mostra nuanças melódicas e harmônicas muito delicadas, urbanas e modernas que nos fazem sentir a herança bossanovística, como na sua genial versão de Garota de Ipanema, para mim o momento mais claro dessa contradição do violão de Baden.
Gilberto Gil incorporou o espírito otimista cosmopolita da década de 60 e 70 que via no Rock’n’roll e no jazz duas linguagens que traduziam a idéia de sujeito livre. Gil é a síntese desse universalismo estético (que logo se consagrou na estética “pop”) com a idiossincrasia tupiniquim. Gil ajudou a consolidar o Samba-Blues, o samba-Rock, o Samba Jazz (o samba-jazz do Gil não é bossa-nova). Gil é o negro absolutamente livre. Trabalha com harmonia moderna sem excessos e sem muito engajamento, embora tenha assimilado o que o Jazz, a manifestação da cultura negra mais bem sucedida no ocidente, deixou de possibilidades musicais. O baião trabalha muito comumente com uma escala de blues, Gil domina essa estrutura como poucos. Assim, pôde fazer o elo blues-rock-bossa-baião-reggae-samba. Janis Joplin-Luiz Gonzaga-Jacson do Pandeiro-Bob Marley-Dorival Caymmi-Tom Jobim.
A pergunta vem: Como pode Manoel Cordeiro negar - radicalmente – o Jazz e o Rock? “Negar” aqui não significa “negar na consciência”, mas significa “não sentir”. A afirmação vem: Ele não sente o Jazz e o Rock (por conseqüência não sente o “pop”). É que ele é “puro sentimento”, entrega-se a sua paixão. Sentir significa não-saber. Sentir é entregar-se a uma percepção, ao tentar dizer essa “percepção”, lembrando do sentimento, já estamos ‘formulando’ e, portanto, ‘fingindo’ (para usar o termo de Fernando Pessoa). O violão de Manoel Cordeiro é pura transmissão de emoção com todas as conseqüências interessantes e desinteressantes que isso tem. A música é a única arte que transmite diretamente a emoção, pois todas as outras nos emocionam por intermédios dos conceitos, dos pensamentos e dos fingimentos.O violão de Manoel Cordeiro é cego, não porque não vê, mas vê coisas que não dá pra se dizer. Ele, portanto, não diz nada. Como dizer o inefável? Como não ouvir o violão de Manoel Cordeiro?

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009


Chico Buarque: uma questão chave. (Sobre o texto de Ruy Castro)
Felipe Cordeiro

“Foi uma sutileza que Deus aprendesse grego quando quis se tornar escritor – e que não o aprendesse melhor”.
Friedrich Nietzsche in Além do Bem e do Mal – Prelúdio a uma Filosofia do Futuro



Um dia fui bobo e me perguntei: Por que não nasci em 1968? Um ano charmoso para a história do mundo todo, charmoso, sobretudo, porque os franceses são charmosos e 68 é um ano muito francês.
É, ainda, a fase heróica do movimento estudantil francês e que os estudantes, principalmente, paulistas e cariocas imitaram. Estamos falando da esquerda estudantil. Portanto 68 é um ano de muitas bandeiras e muitas “atitudes”. Só pra lembrar que os partidos de esquerda no Brasil, entre eles o próprio PT em outras épocas (e hoje o Pstu e Psol), usaram e ainda usam a mesma maneira sintética, reducionista e de rápido entendimento - para criticar o Capitalismo - que os estudantes da França sessentista, a saber, FORA “alguma coisa”!.
Chico Buarque chegou a mim aos 6 anos (me lembro de cada momento) de maneira imprevista, através da música Construção. Para mim, não há nada parecido com essa música (a composição melódica e poética no arranjo Genial) na história da música brasileira, de tudo que já ouvi, certamente essa música (e esse disco por inteiro) foi aquilo que mais me impressionou em matéria de genialidade musical (música popular) no Brasil até hoje. Quando escutei essa música era 1990. O muro de Berlim tinha sido derrubado há pouco tempo (não tenho memória real desse acontecimento), mas me lembro muito bem do Lula (com um aspecto sujo, meu pai votou nele) e do Collor com sua boçalidade estonteante. Quero dizer com isso, que não fazia a menor idéia do que era a Ditadura Militar, quem era Marx e a Alemanha Oriental. Ainda assim, aquele disco me tocou de maneira definitiva, como um destino.
Quero ainda dizer, que todo grande artista é sempre maior que o seu tempo, isso quer dizer que usa o tempo para impor sua qualidade de percepção do mundo. Um professor de História que contextualiza, de maneira lógica, músicas do Chico Buarque no período da Ditadura Militar no Brasil é óbvio que não sabe escutar música. É tão óbvio que não vou estender essa questão, não me interessa desenvolver obviedades. Mas o fato é que existe uma espécie de “chiquismo” tão idiota quanto todo outro “ismo”, que como bem disse Ruy Castro (neste ponto concordo com ele), tentou usar Chico Buarque como bandeira para certas coisas. A bandeira que mais me incomoda, e que Ruy parece hastear é a que o próprio Chico Buarque tem mais culpa, isto é, a que diz que a música (popular) camerística, harmonicamente equilibrada e nacionalista na poética é mais verdadeira, bela e genial forma de se fazer Música Popular no Brasil. Eis um engano que nosso Mestre do cancioneiro deixa subentendido, ainda que eu não tenha realmente como afirmar isso. Sei que seus discípulos, os “chiquistas”, pensam assim.
Arte é forma, mas não “pura formalidade”, pois designa algo exterior ao seu material. A única arte puramente formal é a arte musical. A música, diferente das outras artes, é só seu “material” sonoro: melodia, harmonia, timbre, ritmo, silêncio, duração. As artes plásticas, a literatura, a Filosofia (para alguns ela é uma arte), o Cinema (para alguns ele é uma arte), o teatro, a arquitetura, trabalham sempre com conceitos. Neste sentido não são artes puramente formais. A música popular brasileira não é só música, nem só literatura, mas uma síntese que se formou e se definiu historicamente. Quando falamos de música popular no Brasil estamos falando de uma maneira de expressão artística elaboradíssima, que tem uma Historicidade relativamente madura, tem, ainda, como marca a constante retomada de caminhos longínquos; tentativas sucessivas de elaborações de novos caminhos; mas que se caracteriza fundamentalmente por uma idéia, a idéia de contradição. Posto que da contradição chega-se a novas sínteses e formas estéticas. Enquanto que a idéia de Tradição se marca por um excesso de memorialismo, e repetição do mesmo, ainda que o mesmo seja Belo. Portanto uma “falsa síntese” já que a síntese deveria ser uma qualidade de percepção do mundo. Se esta qualidade já existe, isto é, já foi feita por alguém, seria quase que desnecessário impô-la novamente.
Mas pra não perder o fio da meada, quero com tudo isso, dizer que Chico Buarque foi um sujeito engajado no seu tempo, hoje o é de maneira mais tímida. Foi ao combate nas questões políticas e estéticas. Chico é um homem de Combate, ainda que hoje, em dias mais democráticos e com o seu presidente do coração eleito, fale pouco. Talvez por ser otimista com os tempos atuais (não acredito nisso), talvez pelos quase 70 anos e todo mundo, principalmente um gênio como ele, tem o direito de querer viver sem maiores batalhas.
Hoje percebo que nasci na época certa. Depois dos gregos da música popular brasileira. Chico é um deles. Talvez ele seja Aristóteles, o mais aparentemente lógico, mais “enxuto” na forma, mais Histórico. É bom rever os gregos, sem afetações políticas (de conteúdo esquerdista ou nacionalista), um mal tremendo pra toda a análise. O nacionalismo é uma ideologia de fracos. Toda nação é uma invenção. A única coisa que é fundamental na música popular brasileira é o princípio da Contradição, exatamente o oposto aquele da fórmula aristotélica, a saber, o princípio da não-contradição, onde algo não pode ser e não-ser ao mesmo tempo.

domingo, 15 de fevereiro de 2009

Entrevista com a cantora paulista Karina Ninni




e-MPB: Karina Ninni
Os personagens da MPB em um bate-papo por e-mail.
10/10/2008



A música da paulista Karina Ninni faz ponte aérea São Paulo – Belém. Durante oito anos ela ouviu, interpretou e criou laços com os sons e as gerações dos músicos paraenses. Lançou o CD de estréia em 2004, “pelo retrovisor”, que apresentou todas estas “informações sonoras”. De volta a terra dos bandeirantes, na luta, está reconquistando espaços e garimpando novos trabalhos musicais. Conheça Karina Ninni:


Unesp fm – Como foram seus primeiros passos musicais ?


Bem, dizem em casa que eu era um bebê quando decorei o hino nacional e comecei a cantá-lo. E os jingles de televisão todos, e tal. Então eu posso dizer que canto desde que me entendo por gente. Depois fui estudar e aprimorar e tudo mais. Profissionalmente, eu canto desde os 21, 22 anos.


Unesp fm – São Paulo e Belém, quais os sons destas cidades em sua audição e interpretação ?


Eu tenho tido, graças a Deus, muito contato com compositores novos, gente que está produzindo muito, e produzindo bem. Em Belém isso foi definitivo para me puxar mais definitivamente para a música, já que eu sou jornalista, e também leciono no ensino superior, na área de comunicação social. Quer dizer: o desafio de cantar o novo é muito estimulante para mim. Em Sampa eu estou começando a conhecer gente com quem me identifico, compositores que eu gosto de cantar, e eu mesma passei a compor mais também - letras, no mais das vezes. Então, são duas cidades em que se pode trabalhar muito bem com música. Agora, São Paulo é maior, e por isso, para se identificar com certo grupo, ou compositor, ou o que for, você leva mais tempo. E para que seu trabalho apareça, idem. Você faz aquele trabalho de formiguinha, de show pequeno aqui e ali, de cantar o repertório do seu CD no meio de um gig de samba. E isso vai surtindo efeito aos poucos.

Unesp fm – Conte a história do CD de estréia “Pelo retrovisor” ?


Ele foi gravado em Belém do Pará. Só com compositores de lá. E totalmente finalizado lá. Fui para Belém com meu então marido, que era correspondente de um grande jornal daqui. Íamos inicialmente para ficar 2 anos. Ficamos 8 anos. Lá eu me envolvi definitivamente com música, mas nunca larguei as outras profissões. Comecei a cantar coisas inéditas em festivais. Comecei a ganhar prêmios. Aí os compositores de lá começaram a me procurar, a me dar coisas para cantar e gravar. Coisas novas. Então eu peguei um gosto imenso por isso. Quando achei que estava pronta para gravar meu primeiro trabalho, eu tinha tanto material bom nas mãos, tudo inédito, tudo de lá, que eu pensei: ‘ah, não vou gravar nada conhecido, não. Vou gravar os novos compositores daqui’. Aí então eu acabei mixando, no Pelo Retrovisor, gente mais conhecida localmente - os veteranos - com compositores novos. E achei que deu certo.

Unesp fm – Fale de seus amigos compositores que estão no CD ?


Ah, eles são muito bons lá em cima, sabe? São refinados, têm um bom gosto incrível e são generosos, no sentido de confiar as canções a você. Eu destaco dois caras que acho que ainda vão dar o que falar: o Felipe Cordeiro e o Leandro Dias. São dois garotos de 22, 23 anos. São muito bons. O Felipe está lançando daqui uns três meses o primeiro CD dele, que se chama Banquete, e onde eu gravei 3 músicas, incluindo a faixa título. No Pelo Retrovisor tem uma música do Leandro, que se chama Quase Vida, e é uma marcha-rancho. E ambos são meus parceiros musicais, também, temos músicas juntos. Agora, tem o Floriano, que dirigiu o CD e é um grande compositor, autor da primeira faixa do Pelo Retrovisor. Tem a Maria Lídia, tem o Pedro Cavaléro e o Pedro Callado. E tem um cara chamado ZéMaria, que compõe de um jeito que me agrada muitíssimo. Eu fui a primeira pessoa a gravar o Zé. E foi engraçado, Tramóia foi a última música a entrar no CD, e é a que faz mais sucesso. Todo mundo gosta dela. É um samba-choro.


Unesp fm - Minha voz é ? Minha interpretação é ? Minha mensagem musical é ?


Minha voz é um lugar no espaço onde me sinto confortável comigo. Minha interpretação é um retrato da minha alma. Não creio que possamos falar em mensagem musical, mas certamente as pessoas percebem que cantar me deixa feliz. Então, se existe algo a ser decifrado, é no fundo o chavão do ‘faça o que te dá prazer, e você estará fazendo direito’.
Unesp fm – O presente e o futuro em relação à carreira, quais os próximos desafios ?
Bem, meu atual desafio é tentar fazer cada vez mais música e cada vez menos o resto. E sobreviver sem grandes sobressaltos. Se eu conseguir isso, já estarei em um outro ‘patamar’. Praticamente falando, eu estou selecionando repertório para meu novo CD, que vai se chamar Samba do Bem, e que traz sambas inéditos de vários cantos do Brasil. São compositores que conheci fazendo festivais, ou viajando a trabalho para cantar, enfim, e todo mundo tem um samba para mostrar, quase sempre. Então, é esse o espírito.


Unesp fm - Como entrar em contato e adquirir seus trabalhos musicais ?
Podem ser adquiridos na Livraria Cultura, na Livraria da Vila, e pela internet, num site chamado Lado de Dentro. No Rio de Janeiro, está à venda em um lugar chamado Arlequim. Eu tenho algumas músicas disponíveis no myspace (www.myspace.com/karinaninni). E o CD está também em alguns blogs como o “Um que Tenha” e o “Música da Boa”. Tenho uma comunidade no Orkut. E meu e-mail para contato, pode divulgar: karinaninni@uol.com.br


Unesp fm - Quem você gostaria de ouvir tocando por estas bandas, nos 105,7 da Unesp fm ?


Olha, gostaria de ouvir o Ronaldo Silva, o Leandro Dias, o Felipe Cordeiro, o Paulinho Moura, a Maria Lídia, o Fernando Cavallieri. E também os mestres, como Eduardo Gudin, Celso Viáfora, Maurício Tapajós....

Fábio Fleury
Ps.: Foto com Zuza Homem de Melo, Leandro Dias e Karina Ninni no Directv (camarim) São Paulo (2004)

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Entrevista com Cláudia Cunha




Claudia Cunha iniciou no último domingo, 11 de Janeiro de 2009, a temporada de shows de lançamento do seu CD Responde à roda lançado em 2008. Os shows da temporada acontecem todos os domingos às 17 horas no Teatro Gamboa Nova em Salvador, sempre com um convidado especial. O primeiro convidado foi Roberto Mendes que em parceria com Hermínio Belo de Carvalho compôs a faixa Seu Moço do disco da cantora. Assim como no disco, Roberto Mendes e Cláudia Cunha dividiram os vocais da canção no show do último domingo. A temporada segue com os shows no dia 18 de janeiro com participação de Sandra Simões, e dia 25 de janeiro com participação da cantora e compositora Manuela Rodrigues que compôs a faixa Cabe um tanto e em parceria com Cláudia Cunha a faixa que dá nome ao disco Responde à roda. No dia primeiro de fevereiro, último show da temporada, ela recebe o músico e compositor Luciano Salvador Bahia. O show apresenta todas as canções do CD e algumas surpresas no repertório a cada show, e de acordo com os convidados. Assim como certa vez lançaram uma coletânea de CDs de Chico Buarque a partir de facetas da sua obra - O Cronista, O Trovador, O Amante, O Político e o Malandro - é possível traçar os perfis da Cláudia Cunha intérprete a partir do show.

A intensa: Embora algmas canções "peçam" esse tipo de interpretação, se o intérprete não tirar de dentro de si as emoções que a canção pode transmitir então o máximo que pode acontecer é uma boa interpretação. A Cláudia Cunha sabe potencializar as canções e emprestar seu sentimento ao sentimento da música, e muitas faixas do disco ganham outra vida ao vivo e parecem preencher todos os espaços. Foi assim em Baião dividido, em Aioká, em Auto-Retrato, em Ganga-Zumbi, e principalmente em Cabe um tanto.

A delicada: Não a delicadeza por educação ou timidez, mas a delicadeza do cativar, a delicadeza que poderíamos definir como: "onde o afeto é mais sutil". Foi assim na interpretação de No girar de Alice, música que compôs para a sua filha, Mar do Norte com a visão da Bahia de Todos os Santos ao fundo do palco do Teatro Gamboa Nova, Putirum, e Pra você gostar de mim.

A Graciosa: Leveza e sorriso transpiram nas interpretações ao vivo das músicas Din Don, Responde à roda, Quando eu era sem ninguém, e Seu Moço.

Para conhecer melhor o trabalho da cantora e compositora Cláudia Cunha, segue uma entrevista que ela concedeu ao blog Geração Supernova antes do início da temporada.

ENTREVISTA COM A CANTORA E COMPOSITORA CLÁUDIA CUNHA

Geração Supernova: Você saiu do Pará e aportou na Bahia. Conte como foi essa mudança, o que significou na sua vida e na sua música.

Cláudia Cunha: Eu cresci numa cidade pequena do estado do Pará onde as festas religiosas e populares constituíam uma referência muito forte na vida dos moradores. Logo, desde cedo eu estava metida naquelas manifestações e acontecimentos, cantando – quando era momento de cantar – e dançando – quando era o momento de dançar. Às vezes, as duas coisas juntas. Vem desse período minha aproximação e encantamento com as tradições musicais do interior e que permanece ainda hoje no meu trabalho.
Nessa cidade havia também um festival de música que acontece já há quase 30 anos e que gerava uma movimentação muito grande de compositores, cantores, etc. Foi nesse festival que comecei a cantar e a ganhar meus primeiros tostões e reconhecimento com a música, por volta dos meus 15 anos, o que acabou me levando a me mudar para Belém em seguida. Já em Belém comecei a fazer o percurso natural pro cantor popular, que é o da noite, cantando em bares, bandas de baile, etc., e, freqüentemente, “defendendo” (expressão engraçada, né?) as composições de amigos em festivais espalhados pelo país. Em 1995 vim fazer uma apresentação aqui em Salvador a convite de uma amiga baiana e arranjei um namorado (Risos). Embora minha história em Belém me trouxesse já um certo conforto enquanto cantora com um trabalho já reconhecido, decidi me mudar pra cá em 1996 e (re)começar uma nova história aqui, o que incluiu entrar pro curso de música da UFBA. Essa mudança não foi fácil no início. Eu já tinha passado pelas etapas da noite, do esquema mais amador e não estava animada a passar por isso aqui, então fiquei voltada pro estudo, pra pesquisa na área de música popular e tradicional e fiquei um tempo sem cantar, alternados com algumas apresentações esporádicas em projetos pequenos (Elas Cantam no T. XVIII; Pelourinho Meio-Dia; Festival de Inverno da Chapada em Igatu; Circuito Cultural UESB e outros.). Entretanto, esse tempo na EMUS (Escola de Música da UFBA) foi importantíssimo, pois me pôs em contato com músicos e compositores talentosos, que se tornaram amigos e parceiros desde então, no fazer e pensar a música.

Geração Supernova: Quais os aspectos semelhantes e diferentes destes dois universos musicais, o Pará e a Bahia? Quais as suas principais referências na música paraense e na música baiana?

Cláudia Cunha: Sabe que eu não vejo muito as diferenças? Vejo mais coisas em comum, como a forte relação com a dança, com a festa. Se aqui tem o axé, lá tem o tecno-brega. Aqui tem o samba-de-roda, lá tem o carimbó. Já no âmbito da música popular (ô termo complicado!) e da poética dessas músicas, há referências e construções que são muito próprias ao contexto amazônico e que são muito bem trabalhadas, no Pará, pelo Walter Freitas, o Nilson Chaves, o Vital Lima, o Joãozinho Gomes. Sem falar de uma geração de compositores novos que têm feito um trabalho muito bonito lá que são o Floriano, o Leandro Dias, o Felipe Cordeiro, o Ziza Padilha e outros. Dos compositores daqui da Bahia, nossa! tem um caminhão: o Gil, Caetano, Caymmi, Elomar, Assis Valente... dos mais novos, o Luciano Aguiar e Borega (Matita Perê), a Manuela Rodrigues (também grande cantora), o Tiago Rocha, o Rafael Dumont, o Luciano Salvador Bahia e muitos outros. De cantoras, nem se fale! Tanto no Pará como aqui na Bahia, há cantoras maravilhosas! E aqui em Salvador, especificamente, tenho grandes amigas intérpretes, e tem havido entre nós, uma aproximação e troca muito freqüentes e frutífera. Vou citar mas espero que não role ciúmes (risos): Manuela Rodrigues, Márcia Castro, Marilda Santanna (tem alguma transação numerológica aí com a letra M), Ana Paula Albuquerque...

Geração Supernova: Em Salvador você teceu estreitas relações com o Choro e o Samba, participando do grupo “Mandaia” e se apresentando como convidada do grupo “Os Ingênuos”, e participando de projetos como o “Coletivo Circo dá Samba”. Como ocorreu essa aproximação com o Choro? E como tem sido participar de projetos de valorização do samba em Salvador?

Cláudia Cunha: O samba é uma escola (olha o clichê!). Minha experiência cantando com o grupo Mandaia por dois anos, todas as semanas, quase sem férias, foi fundamental pro meu crescimento como intérprete. E aí nem importa se no meu CD eu decidi não gravar samba e choro – que era o que muita gente esperava e que, no final das contas, seria mais confortável pra mim. Essa vivência com os chorões, com um repertório imenso e maravilhoso, e com um público fiel e conhecedor que não se deixa enganar, foi um dos mais ricos nesse meu percurso. E depois de um tempo convivendo com esses músicos incríveis e se você é aceita e aprovada entre eles, ah! que delícia. Seu nome cai na roda! Porque a oralidade é um elemento fundamental nesse universo e é de uma força gigante.

Geração Supernova: Em 2007 você conquistou três importantes prêmios na cena independente da música baiana: O Troféu Caymmi de Melhor Cantora, o prêmio de Melhor Intérprete do V Festival da Educadora FM, e o Prêmio Braskem de Música. Este último revelou nos últimos anos os talentos de Mariene de Castro e de Márcia Castro, e assim como a essas duas, lhe possibilitou gravar seu primeiro CD. Como foi participar de cada um deles e o que eles significaram na continuidade da sua carreira?

Cláudia Cunha: Menino, esse ano de 2007 foi uma coisa, né? O que poderia parecer meio estranho essa concentração de prêmios num mesmo ano, nada mais foi que, esse era o meu ano! Lembrei da música do Chico, Sentimental: “este ano vai ser o seu ano ou senão/ o destino não quis/ ah eu hei de ser, serei feliz”. É claro que colocado assim fica parecendo que é algo que foge totalmente ao meu controle, e não é bem assim, já que eu venho atuando há algum tempo. Essa coisa de cantar e fazer música – e tudo o mais que envolve essa atividade, desde que eu passei a fazer isso profissionalmente – sempre teve a minha dedicação, seriedade e todo meu coração. Então um dia a resposta e o reconhecimento vêm, né? Essas premiações me deixaram muito feliz por tudo o que elas representam pra cena musical de Salvador. O show que eu concorri em 2005 ao Troféu Caymmi, o Mesa Farta, acho que foi o ponta-pé de tudo o que se seguiu depois. Foi um show muito bem amarrado, muito bonito, de uma riqueza rítmica! Ali eu comecei a encontrar a direção do repertório e do conceito que veio a resultar no CD. E foi com esse show que pisei pela primeira vez no palco principal do TCA, já que ele foi selecionado para o Circuito Cultural Banco do Brasil. Nós dividimos a noite com a Leila Pinheiro e foi muito lindo! O TCA inteiro, lotado, de pé, aplaudindo! Ah! Em janeiro de 2007 eu voltei a pisar no palco principal do TCA, dessa vez pelo MPB Petrobrás, abrindo o show do Ed Motta. E voltou a ser lindo e o show já se chamava Responde à Roda (música minha e de Manuela Rodrigues). Mas, acredite, depois disso, eu não fiz mais nada nesse ano em termos de show. Tava já me batendo um nervoso (risos) quando decidi gravar uma música minha: No girar de Alice, que eu fiz pra minha filha; fui e inscrevi no Festival da Rádio Educadora. O impulso de realizar e de acreditar que aquele ano ainda ia me trazer alguma coisa boa me fez me lançar então com muita determinação na construção do meu projeto do CD pro Prêmio Braskem Cultura e Arte 2007. Agora perceba que até aqui eu só gastei, não ganhei nada! Hahaha. Então, em novembro sai o resultado! E aí, tipo duas semanas depois sai a premiação do Caymmi, e alguns dias depois veio junto a premiação da Rádio Educadora. Então, eu tô num momento muito especial da minha carreira e muito feliz com as possibilidades que estão se abrindo a partir desses prêmios. De certa forma ainda é recente, o CD acabou de sair, mas estou agora voltada pra realizar o show de lançamento aqui em Salvador, e a partir daí, levá-lo pra outros estados.

Geração Supernova: O CD já estava com o repertório e a pré-produção encaminhada quando você conquistou o Prêmio Braskem de Música, ou foi realmente o prêmio que viabilizou todas as fases de produção do CD “Reponde à Roda”? Como você chegou aos compositores (as) do disco e às participações especiais de Zé Renato e Roberto Mendes?

Cláudia Cunha: Foi o prêmio que possibilitou realizá-lo do jeito que foi, e isso ainda antes de vencê-lo. Vou explicar melhor. Ao inscrever meu projeto eu tinha que apresentar quatro gravações (aliás, das quatro, só uma acabou não entrando pro CD, embora tenham sido regravadas depois com novos arranjos ou com o tempo e o cuidado que não receberam antes). Com esse material pronto aproveitei e abri uma página no MySpace. E essa foi a melhor coisa que eu podia ter feito! Foi incrível a resposta das pessoas e os contatos que se desenrolaram a partir disso. Inclusive, com o Sérgio Santos, que é um violonista, compositor e arranjador maravilhoso, e que se tornou depois, junto comigo, o produtor musical do CD. Foi ele quem trouxe pro CD talentos admiráveis como o Zé Renato, o André Mehmari, o Nailor Proveta, o Ferragutti e outros, além de fazer comigo esse trabalho de buscar e selecionar repertório. Aliás, trabalhou muito bem, aquele moço de Minas (risos). Da minha parte e da Bahia vieram o Roberto Mendes, de quem sou grande fã e que me deu a honra da presença (porque esse caboclo lá de Santo Amaro é muito enjoado (risos); o Luciano Salvador Bahia, o Ivan Bastos, a Manuela Rodrigues, o Tom Zé, o Jurandir Santana, Ramiro Musotto e todos os músicos talentosos que tocaram no CD, muitos dos quais já me acompanham pelos palcos.

Geração Supernova: Considerando que o CD pode ser interpretado como “um extrato do show” o que esperar de um show de Cláudia Cunha? Quem você é no palco?

Cláudia Cunha: Ah, pode esperar um show lindo! (risos). O CD tem músicas e arranjos primorosos. O cenário e a direção artística são do Rino Carvalho. E tanto o CD quanto o show tem uma unidade e construção bem brasileira. Agora, eu não sei como responder quem sou eu no palco...O que eu posso talvez é me localizar dentro de uma linhagem de cantoras brasileiras. Pensando a partir desse viés, eu poderia dizer que meu canto e minha forma de me relacionar com a canção trazem desde a brejeirice de uma Carmem Miranda ao sentimento de uma Elizeth Cardoso, ambas ma-ra-vi-lho-sas e emblemáticas na forma de abordar a canção. No mais, é ver pra saber.

Geração Supernova: Gostaríamos de agradecer pela entrevista e desejar todo o sucesso. Sempre terminamos a entrevista com um último recado do (a) artista para os leitores (as) do Blog Geração Supernova, fique à vontade.

Cláudia Cunha: Adorei a chance de falar para os leitores do Geração Supernova.
Ah, quero dizer que todos temos uma ou várias músicas que parecem ter saído de nós; vozes que são também as nossas vozes! E é apaixonante ouvir e descobrir músicas que se afinam – às vezes instantaneamente – com nossas sensibilidades. Mas pra isso acontecer, tem que se abrir pra ouvir!
Quero aproveitar pra convidar todo mundo que estiver em Salvador, em janeiro, para ir à temporada de lançamento do CD “Responde à Roda” que acontecerá todos os domingos às 17 hs, no Teatro Gamboa Nova. Beijos e espero que tenham curtido. Eu curti.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

Fernando Pessoa; Paganismo; Cristianismo; Decadência


Traços do Paganismo em Fernando Pessoa

Fernando Pessoa, poeta estimulado pela filosofia, desenvolve em diversos textos, sobretudo nos seus escritos teóricos em prosa, a idéia de um paganismo de caráter anticristão, trata-se de um sistema pagão que estaria recalcado pela doença moderna, fruto da interiorização da religião cristã, onde se vê também que a própria civilização moderna seria reflexo imediato de idéias cristãs que contrariam a natureza humana, uma religião não-natural que se infiltrou na sensibilidade do homem e precisa ser combatida.
Pessoa sustenta que o paganismo é a mais natural das religiões, pois é ancorada em preceitos que elevam a sensibilidade e orientam a atividade social estimulando o espírito humano de maneira mais livre e harmônica. O poeta fundamenta esse entendimento, basicamente, de três modos, a saber, a religião pagã é politeísta, portanto adequada ao modo como a realidade “para nós” aparece, isto é, de maneira diretamente plural, não há na natureza uma unidade, mas “muitas coisas” que atingem nossa sensação, assim, a religião, a partir do fato de que aparece para nós como uma realidade externa deve corresponder à característica fundamental da realidade exterior; a religião pagã é humana, assim os atos dos seus deuses são atos magnificados de homens, os deuses são, portanto, super-humanos e não anti-humanos; a religião pagã é política no sentido de que é parte da vida da cidade ou do estado, não visando o universalismo. Segundo Pessoa, em todas as outras religiões há um afastamento dessa visão, que por conseqüência veio a provocar civilizações decadentes, posto que, são desenvolvidas a partir de princípios que desprezam a vida.
[...]


A intervenção cirúrgica anticristã”, segundo Álvaro de Campo. Extraído de Obras em Prosa, Editora Nova Aguilar. (recortes do texto original)


1. ABOLIÇÃO DO DOGMA DA PERSONALIDADE

Resultados:
a) Em política: abolição total do conceito de democracia, conforme a Revolução Francesa, pelo qual dois homens correm mais que um homem só, o que é falso, porque um homem que vale por dois é que corre mais que um homem só! Um mais um não são mais do que um, enquanto um e um não forma aquele Um a que se chama Dois. – Substituição, portanto à Democracia, da Ditadura, do Completo, do Homem que seja, em si-próprio, o maior número de Outros; que seja, portanto, A Maioria. Encontra-se assim o Grande Sentido da Democracia, contrário em absoluto ao da atual, que aliás, nunca existiu.
b) Em arte: abolição total do conceito de que cada indivíduo tem o direito ou o dever de exprimir o que sente. Só tem o direito ou o dever de exprimir o que sente, em arte, o indivíduo que sente por vários. Não confundir com “a expressão da Época”, que é buscada pelos indivíduos que nem sabem sentir por si-próprios.

2. ABOLIÇÃO DO PRECONCEITO DA INDIVIDUALIDADE


Resultados:
a) Em política: a abolição de toda a convicção que dure mais que um estado de espírito, o desaparecimento total de toda a fixidez de opiniões e de modos-de-ver; desaparecimento portanto de todas as instituições que se apóiem no fato de qualquer “opinião pública” poder durar mais de meia-hora. A solução de um problema num dado momento histórico será feita pela coordenação ditatorial dos impulsos do momento dos componentes humanos de esse problema, que é uma cousa puramente subjetiva, é claro. Abolição total do passado e do futuro como elementos com que se conte, ou em que se pense, nas soluções políticas. Quebra inteira de todas as continuidades.
b) Em arte: abolição do dogma da individualidade artística. O maior artista será o que menos se definir, e o que escrever em mais gêneros com mais contradições e dissemelhanças. Nenhum artista deverá ter só uma personalidade. Deverá ter várias, organizando cada uma por reunião concretizada de estados de alma semelhantes, dissipando assim a ficção grosseira de que é uno e indivisível.

3. ABOLIÇÃO DO DOGMA DO OBJETIVISMO PESSOAL


A objetividade é uma média grosseira entre as subjetividades parciais. Se uma sociedade for composta, por ex., de cinco homens, a, b, c, d, e e, a “verdade” ou “objetividade” para essa sociedade será representada por:


a + b + c + d + e
--------------------------------
5


No futuro cada indivíduo deve tender para realizar em si esta média. Tendência, portanto de cada indivíduo, ou, pelo menos de cada indivíduo superior, a ser uma harmonia entre as subjetividades alheias (das quais a própria faz parte), para assim se aproximar o mais possível d’aquela Verdade-Infinito, para a qual idealmente tende a série numérica das verdades parciais.
a) Em política: o domínio apenas do indivíduo ou dos indivíduos que sejam hábeis Realizadores de Médias, desaparecendo por completo o conceito de que a qualquer indivíduo é lícito ter opiniões sobre política (como sobre qualquer outra coisa), pois que só pode ter opiniões o que for Média.
b) Em arte: abolição do conceito de Expressão, substituído por o de Ente-expressão. Só o que tiver a consciência plena de estar exprimindo as opiniões de pessoa nenhuma (o que for Média portanto) pode ter alcance

Resultados finais, sintéticos:
a) Em política: monarquia científica antitradicionalista e anti-hereditária, absolutamente espontânea pelo aparecimento sempre imprevisto do Rei-Média. Relegação do Povo ao seu papel cientificamente natural de mero fixador de impulsos de momento.
b) Em arte: substituição da expressão de uma época por trinta ou quarenta poetas, por a sua expressão por (por ex.), dois poetas cada um com quinze ou vinte personalidades, cada uma das quais seja uma Média entre correntes sociais do momento.Em filosofia: integração da filosofia na arte e na ciência; desaparecimento, portanto, da filosofia como metafísica-ciência. Desaparecimento de todas as formas do sentimento religioso (desde o cristianismo ao humanitarismo revolucionário), por não representarem uma Média.